Adquiri “A Canção do Sangue”, de Anthony Ryan, em 2019. Sendo o primeiro livro da trilogia “A sombra do corvo” (adoro esses nomes que não querem dizer muita coisa, mas que tem a necessidade de carregar uma certa pompa), a capa me vendeu e eu terminei comprando os dois primeiros livros. Como vários outros na minha estante, o livro ficou juntando poeira por pouco mais de um ano e meio, até que finalmente comecei a lê-lo no final do ano passado.
A sinopse é a seguinte: Vaelin Al Sorna nem chegou aos 10 anos (ele é que está sentado no cavalo na capa do livro), mas o seu pai (que é “Senhor da Batalha” de um certo reino X) o leva para o mosteiro da “Sexta Ordem”, onde ele vai ser treinado para essencialmente virar um templário. Chegando lá ele faz amigos (claro) e acompanhamos o dia-a-dia dele desde o início de seu treinamento, as diferentes “provas” a que é submetido, sua nomeação como irmão da Sexta Ordem e os eventos onde ele se inclui e exerce sua influência no mundo.
O mundo do livro merece uma explicação à parte e é, no meu entender, o ponto mais alto da obra. O livro começa com Vaelin sendo levado como prisioneiro de guerra para ser executado em algum lugar ignorado. Um escriba é encarregado (a mando dos seus captores) de registrar a história de vida de Vaelin e de seu reino. Sim, eu sei que isso lembra MUITO o início de O Nome do Vento, mas continue comigo. Cada “seção” do livro começa com uma conversa entre Vaelin e o escriba, seguido de uma coletânea de rememorações desse primeiro. O escriba cita Vaelin e sua terra como “povo do norte” e os chama de bárbaros mais de uma vez. Ao adentrarmos na história de Vaelin per si, vemos que as terras do norte, de onde ele vem, é composto na verdade de um grande Reino unificado aproximadamente trinta anos antes pelo Rei Janus. Em uma série de conflitos, Janus reuniu quatro grandes feudos sob uma só bandeira. Existe uma religião dominante na maior parte do Reino, chamada somente de Fé. Essa Fé se materializa em seis Ordens, cada uma com um objetivo específico: a Sexta é a dos guerreiros, a Quinta é a da cura, a Quarta caça hereges e a Terceira cuida (aparentemente) dos registros e da escrita em geral. As Ordens por sua vez são controladas pelos Aspectos, homens e mulheres excepcionalmente devotos da Fé. O autor fala pouco sobre os mistérios da Fé, o que é uma pena, já que ela evidentemente tem um papel muito significativo no mundo. Pelo que é explicado, a Fé se baseia na existência dos Finados, que seria o além. Não existe uma divindade ou um panteão, e não existe a evidência de um livro base. Somente a crença nos Finados. Como uma religião consegue se impor e se segurar só com base nisso eu não sei.
Dentro do Reino existem aqueles que negam a Fé, chamados de negadores, e estes são maioria em Cumbrael, um dos Feudos que fazem parte do Reino. Isso é motivo de diversas rusgas e desentendimentos, além da perseguição desses negadores pela Quarta Ordem. Por fim existem as Trevas, que é a fonte de poder mágico do mundo. A comparação mais fácil de fazer é com a Warp em Warhammer 40.000. Aqueles que são proficientes nas Trevas podem usar poderes a partir dela, mas isso também não é tão bem explicado no livro. Sabe-se que as Trevas (além de perseguidas) são um elemento mágico no mundo, mas ninguém se dá ao trabalho de falar O QUE poderia ser feito com ela. Um rapaz afirma ter conseguido forjar uma faca usando as Trevas, para o horror de seu pai, mas ele é incapaz de falar como.
E é aí que vem uma das minhas queixas com a história: ela deixa pontas soltas demais. A cada página você é apresentado a um conceito, personagem ou evento novo no livro que é deixado lá para que depois possa ser usado pelo autor quando for interessante. Exemplos:
- Vaelin passa um tempo como “estagiário” na Quinta ordem, e lá encontra um ladrão escalador de paredes que está com um machucado no braço. Algumas páginas depois esse escalador desaparece só para ser encontrado ao acaso por Vaelin quando ele vai recrutar bandidos para o exército real. Esse escalador se torna essencial em um plano poucas páginas depois;
- Durante esse período de estágio ocorre uma tentativa de matar vários aspectos. Vaelin dá cabo de vários assassinos sozinho. Ao morrerem, os assassinos falam que “antes eram sete”;
- Vaelin encontra um menino de rua quando visita uma cidade próxima e dá para ele uma faca de arremesso. Esse rapaz usa a faca para tentar matar um desafeto, falha e resolve se refugiar na Sexta Ordem, pedindo para ser treinado lá. Páginas depois o mesmo desafeto sequestra o menino de rua, o leva para uma espécie de igreja abandonada onde fica torturando o rapaz. Vaelin aparece de última hora e salva o jovem, mas não antes de perceber que a igreja abandonada faz referência a existência de uma Sétima Ordem;
- Vaelin encontra um bêbado na rua. Depois descobrimos que esse bêbado é o filho do Senhor Feudal de Cumbrael, e só ele sabe da existência de uma passagem secreta em uma fortaleza inexpugnável cuja tomada é essencial para o sucesso de uma guerra aleatória;
- Vaelin encontra uma menina por acaso colhendo flores no bosque, enquanto está tentando andar a cavalo. A menina revela que é a meia-irmã dele por parte de pai e foge para a floresta;
- Vaelin está na floresta, quando encontra um lobo imenso e feroz. O lobo rosna para ele e some na floresta;
- Páginas depois, Vaelin encontra dois assassinos que foram contratados para matá-lo, só que por engano matam um amigo dele. Ninguém sabe quem eram ou quem os mandou fazer isso. Não que isso importe, porque no segundo seguinte o lobo aparece e mata os dois assassinos. E vai embora de novo;
- Vaelin está caçando negadores em um bosque, quando encosta em uma pedra e é teletransportado para a consciência de uma elfa, que diz que o trouxe para ali para que ele soubesse o nome dela, porque isso vai ser importante no futuro. Sério, não estou zoando. Esse diálogo acontece.
Problemas à parte, o roteiro é uma clássica Jornada do Herói: você tem uma crise, o herói aprende algo, melhora suas habilidades e consegue derrotar a crise. Isso repetidas vezes. Isso seria mais valioso se o personagem principal não fosse uma clássica Mary Sue. Até mesmo as falhas que ele apresenta só são comparáveis às habilidades únicas de seus amigos, que rapidamente se desenvolvem nos maiores especialistas da Ordem em arco e flecha, cavalgada, luta, criação de armas em forjas, etc e tal. Em um determinado ponto do livro ele precisa perseguir um antigo colega da Sexta Ordem, que era especialista em ser “stealth”. Isso não impede que Vaelin ache os rastros dele “onde nenhum outro homem encontraria”. A perseguição vai até uma cidade abandonada “de onde nenhum homem jamais saiu vivo”, mas… Vaelin sobrevive. Não basta o rapaz ser um bom guerreiro: ele tem que conseguir uma proximidade com o Rei que mais ninguém tem. O livro tem seus momentos bons, e a criação do mundo é interessante. Acho que existe um potencial bacana aí e eu espero que os demais livros da trilogia consigam preencher essas lacunas.
Recomendo, mas não muito.
Nota final: 6.0